Microretrato de viadagens no cinema


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“os acidentes de luz aqui (…) não afetam a ‘alma’, mas somente o corpo (…) cuja fatiga tem finalmente algo de delicioso, como acontece cada vez que é o meu corpo (e não meu olhar) que fica turvo”

Incidentes, Roland Barthes, 2004

Parte 1

Podemos começar com um pouco de história sobre cinema e viadagem. É que mais de 20 anos após o histórico movimento denominado pela crítica de cinema norte-americana B. Ruby Rich de New Queer Cinema – NQC, que se apropria do termo queer, uma expressão originalmente ofensiva a lésbicas, gays e transgêneros e complicada de traduzir para o português… é que há mais de 20 anos diretores assumidamente gays, no contexto Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, começavam a revisar nossa trajetória história em períodos eurocêntricos, como o monárquico, inquisitorial ou entre-guerras, além de atacar os macro-temas daquela época:

… estamos falando de 80/90, de tensões como a crise do HIV/aids e violências homofóbicas heteronormativas e interaciais. Um período em que a festa já bastante hedonista acontecia nos guetos e que se transgredia em alguns locais das ruas ou à deriva pela cidade (sendo, inclusive, judeu, negro, assassino ou ladrão); alguns, contestando mais que uma simples identidade gay mas o lúdico em uma indeterminação narrativa, isto é, uma sensibilidade do exagero, do artifício e, na realidade do mundo, por haver uma condição abjeta de estar completamente fora de setores dominantes.

Hoje, o cineasta Chico Lacerda questiona: eram realmente queer os filmes do NQC? Eles desafiavam as noções de gênero e de orientação sexual? Desconstruíam binarismo, como homo x heterossexual; feminino x masculino – e rótulos, como lésbica, gay, bi – disseminados à época? E nossos corpos e prazeres, como estão sendo pensados e não apenas tolerados? Nossos corpos desde a infância até a velhice, seja com o cara na praia, na pegação, na sauna, de mãos dadas na rua ou em nossas casas?!

Parte 2

Aqui, no país da tropicália e do cinema marginal, pós-60/70, embora não estivéssemos sendo representados por cineastas assumidamente gueis, temos em Casa Assassinada (1971, Paulo César Saraceni), uma bicha devorando as normas burguesas numa família com tradições coloniais. Ou Rainha Diaba (1974, Antônio Carlos Fontoura), a bicha enfrentando os machos criminosos no mundo do tráfico carioca, entre outras abordagens transgressoras não majoritárias mas importantes ainda de serem retornadas e exibidas. Até chegarmos nos anos 80/90, quando surge lá fora o New Queer Cinema.

Voltando a nós, nesta época estávamos atentos às representações homoeróticas no cinema brasileiro, fora de qualquer padronização, higienização, modelo de identidade guey ou código de conduta vigente em relação à raça e classe social. Isso porque de alguma forma dentro do cotidiano, glamoroso ou não, a cena estava aberta e as bichas já lacravam.

Vem Madame Satã (2002, Karim Aïnouz), com suas ambiguidades, a potência de um corpo negro, forte e feminino nos palcos da Lapa, seu empoderamento devorador das nossas brasilidades tropicais. Bicha afeminada, perigosa, criminosa e madame Jamací, “uma onça dourada, de jeito macio, de gosto duvidoso”.  Madame Satã é um personagem bem típico de um cinema brasileiro em termos da marginalidade, mas onde quem dominava mesmo eram os machos.

Isto é, também vemos uma cena sudaca em que na história do cinema brasileiro também pode ter havido algumas dualidades importantes de serem pensadas, como afirma B. Ruby Rich, referindo-se a um traço do cinema queer estrangeiro: “meninas contra meninos, obras narrativas contra experimentais, meninos brancos contra todo o resto, elitismo contra populismo, expansão de visões contra patrulhamento de fronteiras”.

Mas alô alô alô é carnaval; as bichas por aqui não param de lacrar…

Fabricio Fernandez
Integrante do ES Cineclube Diversidade; autor da trilogia-perfomance: Nome nenhum [ed. Multifoco/RJ); Música no corpo de fuga [ed. Pedregulho/ES] e Autobyographia em pânico [em processo]; jornalista livre e mestrando na Ufes.

Ensaio escrito ao som de https://maquinas.bandcamp.com/track/mofo

Livros consultados:
LOURO, guacira Lopes. O Corpo Educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1999.
COLLING, Leandro. Teoria Queer, 2011. In: ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de
LACERDA, Chico. New Queer Cinema e o cinema brasileiro. In Mostra “New Queer Cinema: Cinema, Sexualidade e Política”. MURARI, Lucas; NAGIME, Mateus (orgs).: 2015.
MAFESSOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Tradução de Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003.
MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade Estadual de Campinas, 1995.
RICH, B. Ruby. New Queer Cinema. In Mostra “New Queer Cinema: Cinema, Sexualidade e Política”. MURARI, Lucas; NAGIME, Mateus (orgs).: 2015. p. 18-30.

Link dos filmes citados: 
Madame Satã: https://www.youtube.com/watch?v=jiuzETOkTFQ

 

A Casa Assassinada https://www.youtube.com/watch?v=elDrJ3sIsTI

 

Um comentário sobre “Microretrato de viadagens no cinema

  1. Olá pessoal, queria fazer uma sugestão a vc es do site que acompanho já a algum tempo. O que vocês acham de criar grupos no wattsapp para integração do pessoal. Tipo vocês pode divulgar um post com a descrição de cada grupo com a preferência de cada um tipo quem quer interagir com crossdresser ou transsex lésbicas etc sei lá só sugestão Se precisa de explicação mais definida entre em contato

    Valeu

    Nayguel

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