Por Aloe Vera
Eu ainda me estranhava com o Rio — e a cidade comigo — quando conheci ele. O cabelo um pouco ralo, acima da testa, o rosto bonito, uma risada meio asmática. Tinha acabado de ser cuspido pelo fogo. Carregava a pele, em grandes porções, em luvas e compressas que, nunca soube como, deviam cozinhá-lo ainda mais naquele calor esquisito em pleno agosto. Me disse seu nome, desconfiei que era falso.
Veio me contar, dois encontros depois, que não se chamava assim, mas nem se deu o trabalho de me apresentar as digitais e assinaturas de sua identidade. Não que se fosse necessário. Ele — e tão somente o chamarei dessa forma — havia me perguntado, no dia anterior, se me incomodava com a pele retorcida e a marca de uma traqueoscopia, amarela e pálida, que se escondia sobre a blusa xadrez verde escura e seus botões — todos eles — aninhados.
Eu, na caligrafia do meu corpo, também tenho os meus garranchos. Sob a minha pele se escrevem diversas cicatrizes, algumas estrias, as veias se erguem — esverdeadas como a sua blusa — nas articulações em que ela se estende ainda mais esbranquiçada. Olho meu corpo, nu, em frente ao espelho e observo todas as minhas marcas. Ele, no reflexo, vê todos os fogos. A pele é quente, úmida, irritadiça como um temporal que marca as tardes abafada de verão.
Os verões que se estenderam por nós, se fizeram entre alguns beijos tímidos e uma cama velha, que rangia bastante, naquele apartamento apertado que o dinheiro me permitia alugar em Copacabana. Era num prédio de má fama, como os nossos corpos que não são dessas pessoas que, como lagartos, exibem os dorsos ao sol de Ipanema. São corpos comuns, papéis esquecidos dentro de uma gaveta, mapas antigos em que se inscrevem as fronteiras de países que já nem existem mais.
Todo corpo tem a sua cartografia, posta à prova pela ponta dos dedos, a superfície da pele, a aspereza da língua. A carne levanta-se e se dilui em certo ponto ou outro, enche-se e esvazia, num exercício topográfico que levanta, sob os ossos, um jardim suspenso de prazeres e tesouros desconhecidos prontos a serem descobertos entre lençóis e mordidas. Algumas barrigas erguem-se como vulcões extintos, as pernas esparramam-se como grossos pântanos. Em outro, comprime-se as cláviculas e navega-se sobre fundas depressões em que se deposita saliva e desejo.
Em vão vamos tentando redesenhar nossos mapas, descolar nossos tesouros de certas partes para esculpi-los como totens, carrancas, em músculos que precisam ser exatamente construídos como os livros de anatomia. Aos poucos, vamos descobrindo que todos os esforços são desnecessários. Nossos corpos são inúteis, vagabundos. Tem estrias, queimaduras, celulite, a pele ora é macia e ora áspera. Craveja-se de pontos pretos, de machucados, de arranhões.
A felicidade não consiste no corpo impossível, mas no que se faz possível a nossa frente. Naquele se dispõe a abraços, amassos, fluidos, encontros e dispersões. Todos nós fomos mastigados, cuspidos, escarrados pelo fogo.
Até sobrar só as cinzas.
Aloe Vera é correspondente internacional do Babado Certo no Rio de Janeiro. Escreve sobre a cidade (que só tem viado), as distâncias de Vitória e as dores e delícias de encontrar Renata Sorrah na fila do cinema. Entre em contato com ela por meio de mesa branca, baralho cigano ou do e-mail a.loevera@outlook.com.
Já estava com saudade das suas crônicas bem construídas, inclusive concordo em gênero, número e grau com tudo que li, bela análise. By querida.
Obrigada, beijso de luz
Aloe, O prédio de má fama em Caopacabana é aquele na Sá Ferreira com Bulhões de Carvalho, ao lado do metrô? 😘😘🌹. Adorei…
incrivelmente bem-escrito, parabéns Aloe!
Você é muito talentosa. Tá mais do que evidente que o seu destino é escrever.